Andamento

Saturday, March 18, 2006

O gato de Alice

Durante tempo não consegui dizer nada sobre o que sentia. Desde que a Alice me deixou que fiquei do avesso no quotidiano a tentar concretizá-la atrás das esquinas da casa, quando se aproximava intempestiva e segura, a preocupar-se com um gato malhado que nunca vi.
Hoje a ouvir a banda sonora de Alice, um filme de Marco Martins. Uma outra Alice recordou-me da Alice. A que já fui? A que serei?
A Alice era eu e não era eu. A Alice morava em mim como o meu futuro. Como a minha vida que vai acontecer. Tornar-me-ei na Alice e sei-o desde que ela me abandonou. Como pode alguém inventar alguém em quem eu me tornarei? Quer dizer que se somos invenções perpétuas das mãos dos outros, o que somos sozinhos debaixo da lua? Pó? Pó cansado e desdito? Coisa nenhuma de nenhum lugar? Em noites frias, com uma dimensão azul de cidade grande, quando todos os outros já dormem e sonham, as suas frases aguentam-se nos segundos, impossível fugir ao eco. Sou apenas uma vida de pedra dos lugares no sono dormido de todos.Quando acordo ela pergunta-me se o sonho é estranho e se as pessoas dos países por onde andaste te reconhecem como Homem. Ela não acha o sonho estranho. As verdades dela vão-nos vestindo como cascas.“É como se a partir de certa altura as coisas que fazemos parecessem tanto que são escolhas nossas que não podemos fazê-lo de maneira diferente?”Terei uma vaga ideia da vida então.A Alice vai voltar eu sei. Até sei quando ela vai voltar. Aí serei eu ela e ela eu.E o palco será um mundo debaixo dos nossos pés.“Fica bonito quando foge.” O palco. E quando volta. O palco e o amor de Alice.

Tuesday, November 30, 2004

O amor é tão improvável aos vinte anos...

como aos trinta, aos quarenta,

concluí eu ontem nas horas finais do ensaio, enquanto esperávamos por mais uma tentativa de colocar o projector a funcionar. O tema era, entre ais, suspiros e gestos de bailarina de uma das actrizes, o amor.

Não poderia ter havido final mais perfeito para o ensaio de ontem, lembro-me de ter pensado. Sem saber que para mim seria um falso final já que prolongaria o desfecho até ao 2047, visto em sessão tardia. Num anfiteatro, inicialmente espalhadas pelo espaço nos locais correspondentes às marcações que tinham atribuído aos seus personagens, começaram a surgir as vozes dos vinte anos abertos sobre os baldios do amor, do namoro, da experiência. Estavam todas tão entretidas a espelharem-se na conversa que nem repararam no meu embevecimento. É um privilégio poder estar ali, assim, sem impedir o fluir tranquilo desta camaradagem com que se vão emaranhando nos nós que atarão as suas vidas. Já me tinha apercebido disso comigo mesmo: as nossas vidas decidem-se tantas e tantas vezes quando não sabemos, quando não podemos saber, a força decisória dos nossos gestos.

Falaram dos príncipes encantados, dos homens perfeitos, da possibilidade de os encontrar. A certa altura viraram-se para mim. Queriam saber como era vinte anos depois. Fui o mais sincero que pude. Estava num cadeirão de pele, quando as vi a saltitarem pelas histórias dos seus dias pressenti que também me chegaria a mim, tinha-me posto o mais confortável que pude. Confessei-lhes que, muito antes pelo contrário, nunca deixamos esse tema evaporar-se das nossas vidas. Aliás, e já nem sei se o disse se o pensei, toda a nossa vida que vale a pena um dia contar é aquela que é vivida na preparação desse encontro com o amor.

Mas ainda procura a mulher perfeita?, perguntou uma, espantada pela durabilidade desta ilusão. Responder a esta pergunta parece mais fácil do que é. Num relance entrevemos toda a nossa vida que não foi, que falhou, que fracassou e essa é, muitas vezes, toda a nossa vida. Defendi-me o melhor que pude, que sim, com uma pequena diferença: com o tempo passamos a ter na linha do horizonte mais a relação perfeita do que a mulher ou o homem perfeitos.

A nossa moça-com-o-coração-aos-saltos não estava contente. Ela aguentaria ainda um pouco mais esta trepidação cardíaca mas precisava de saber que não seria para sempre e até, que iria deixar de o ser com o tempo. Insistiu:
- Joaquim, esta coisa de uma pessoa se entregar assim tanto a esta paixão é coisa da idade, não é? Com o passar do tempos serei mais racional, menos impulsiva, não é?
Respondi-lhe:
- Provavelmente não. Agora é que toda tu és razão e discurso.Todo o viver é esse trabalho de nos entregarmos cada vez mais e melhor.

Talvez não tenha sido totalmente honesto, mas fui verdadeiro e isso permitiu-me sair em alta comigo mesmo. O que, tendo em conta o adiantado da hora e da minha idade, é piedoso fim.



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